05/04/2007

Histórias sobre os trilhos retratam São Paulo

Por Mayara Evangelista


A cidade ainda dorme enquanto as estações de trem iniciam sua operação. Em pouco tempo dezenas de pessoas se aglomeram na plataforma na espera do trem. Vagões lotados. Olhares aflitos e cansados. Bocejos, cotoveladas. Todos os tipos de pessoas. Umas com trajes atípicos, cabelos rastafari, roupas coloridas, chinelos e outras de terno, gravata, cores sóbrias, sapato de grife. Eis o lugar onde todos ficam no mesmo patamar, nas mesmas condições, num corre-corre, empurra-empurra sem fim.
Pela janela do vagão, a paisagem muda estação a estação, de Mogi das Cruzes a Luz é uma viagem e tanto. A riqueza das áreas verdes de Mogi não é observada, na maioria das vezes, pelos usuários que saem as pressas para não perder o trem e dormem assim que conseguem um lugar para sentar ou mesmo em pé quando se acomodam em um lugar. A vida passa, a história de São Paulo passa do lado de fora dos vidros, assim como do lado de fora das vidas dessas pessoas que vivem para o trabalho. Cada comunidade, cada região. Do interior ao centro muitos prédios fazem parte e participam dos avanços da cidade. A memória de um povo que não conhece e não compartilha a vivência, falha ao perguntar sobre a rua da sua casa, quem dirá sobre o relógio do prédio histórico da luz.
O trem é um universo multifacetado, os vagões deles são palcos para muitas vidas. A busca pela sobrevivência se dá de diversas formas, muitas pessoas utilizam o transporte público para se locomover até trabalho, outras fazem do próprio espaço sua fonte de renda. “Olha a bala de goma. Um é cinqüenta, três é um real.” Um vendedor ambulante tira da mochila que traz consigo, uma caixa de balas assim que o trem fecha as portas. Essa é a garantia que ele tem de não perder a “mercadoria”, como eles chamam, isso porque é proibida a venda de produtos nos vagões da CPTM. Existem ainda sonhos perdidos, Adelmo, seu nome artístico, é um violeiro de Mato Grosso que veio “tentar a sorte em São Paulo”, desejava gravar um CD e alavancar sua carreira na grande metrópole. Como não conseguiu, começou a cantar no trem e passar o chapéu para sustentar-se. Histórias como essas ouvimos diariamente.
Entretanto, nesse vai-e-vem de retratos de vida, está Edigmar Pereira da Silva, por volta de seus 50 anos. Apoiado numa muleta, ele caminhava com dificuldade pelo vagão. Camisa pólo branca, calça de linho marrom, sapatos pretos gastos pelo tempo. Uma bolsa daquelas universitárias no ombro direito. Sentou-se dois bancos à minha frente e começou a distribuir uns folhetos amarelos. O que mais chamou minha atenção foi o fato de todos os passageiros levantarem-se para pegá-lo. Bastava ele esticar a mão em direção a pessoa e zaz, lá estava ela. Levantava, ia até ele, pegava o folheto e sorria agradecida. Coisa rara nos dias de hoje, em que de uma maneira geral as pessoas se sentem incomodadas com qualquer presença que possa atrapalhar seu sono durante o trajeto.
Com sua boina marrom de lado, cabelos brancos, um olhar acolhedor e um sorriso simpático aproximou-se e sentou-se ao meu lado, começamos então a conversar. L. R. Edigmar ou apenas Limoeiro Ramon, foi vendedor de limão e nas horas vagas ele escrevia poemas, poesias e também reflexões. Ele garante que sua obra é um “incentivo para tornar São Paulo um estado de leitores.” O livro tem 32 páginas digitadas, em cada uma encontra-se um poema ou reflexão sobre seu dia-a-dia das coisas ditas “bobas” mas que tem muita importância como a resposta de um “Bom Dia”. A reprodução do livro é artesanal, fruto de xerox para baratear a venda, mas nem por isso perde o valor do conteúdo.O poeta de limão vende seu livro por R$ 2,00 reais de mão em mão. O titulo “O Alicerce Pleno” 1ª Parte – Especial, segundo ele é fruto do desejo de “construir um prédio de vários andares.” Ele começou com alicerce porque acredita ser esse o primeiro de muitos livros que virão.
Enquanto folheava o livro escutei alguém que perguntava se era ele mesmo quem escrevia os poemas, sem pensar respondeu. “Eu e um amigo meu. O mesmo que te ajuda todo dia a levantar-se ir a escola, ao trabalho.” E completou “O nome do meu amigo está bem visível na página 11 do livro.”
A sensibilidade está presente em suas palavras. A escrita mostra a profundidade da qual somente quem viveu pode expressar.

“Chamam-me de Mendigo
Sobrenome Vagabundo.
Sou obrigado a ouvir isto,
Pois vivo jogado no mundo
A espera de um prato dos outros
Não importa se é raso ou fundo.
O teto que cobre meu lar
Tem as cores de um azul muito profundo
Pois é o céu azul de anil que cobre
A imensidão deste mundo."

Trechos “Desabafo de um Mendigo” escrito por ele em parceria com o Giba da Farmácia.


Chegamos na estação Luz, nos despedimos. O Limoeiro Ramon desceu com dificuldade a plataforma e entrou no outro vagão.
Os 329 quilômetros de linhas de trem que podem ser percorridos com uma única tarifa, reserva surpresas, grandes histórias. Pode acreditar: é mais interessante do que parece. É possível fazer uma radiografia da cidade de São Paulo observando as pessoas e as paisagens sobre os trilhos. É mais do que um outro olhar para cidade porque ele vai além da magnitude de suas construções, adentra a alma, toca o lado humano.
O apito soou, as portas do trem se abrem. Bem vindo ao palco sobre os trilhos.

Um comentário:

Anônimo disse...

Nossa, que história hein?
Parabéns!
e boa páscoa