10/05/2007

Morar na rua é uma opção de vida ou conseqüência das desigualdades sociais?

Por Andrelissa Ruiz

Metrópole, desenvolvimento, pessoas elegantes e bonitas, será que é só isso que encontramos em São Paulo? Nas periferias desta imensa cidade encontramos o contraponto: pessoas passando fome, sem casa, sem emprego. A vida de uma cidade grande é cheia de desigualdades, é uma mistura de poder econômico com pobreza. A sociedade da cidade da garoa é assim: de um lado a chuva é fina, do outro é tempestade. Mas, de quem é a verdadeira culpa de tantos problemas sociais? É fácil culpar os governos, dizer que as pessoas procuram empregos e não encontram. Será que todos procuram? Será que levar uma vida sem responsabilidades não é mais fácil?
Há pessoas que estão sem casa, sem emprego, por causa dessa grande desigualdade social entre classes, na qual a ambição é o motivo da vida, mas também há as pessoas acomodadas, que tentam um caminho mais fácil, sem objetivos na vida. Augusto César Lawfor Squifano, 37 anos, morador de rua do bairro de São Miguel Paulista, zona leste de São Paulo, nos conta um pouco da sua vida nas ruas, alimentação, higiene, drogas, bebidas e, principalmente, os meios para se auto-sustentar nessa vida instável e sozinha. Acompanhe o depoimento dele, e conheça a versão de quem vive a margem da sociedade:


Cidadania em Pauta: Você sempre foi morador de rua? Você estudou?
Augusto:
Eu tive uma vida normal, mãe, tudo. Graças a Deus! Eu estudei até a quarta série...

Cidadania em Pauta: E depois disso, por que parou de estudar?
Augusto:
Eu parei porque eu tinha que trabalhar, ajudar minha mãe. Eu sai da escola por causa de muita zoeira também, más companhias. Isso aí me levou de uma maneira totalmente diferente do que eu pensava e, sei lá, de repente eu cai nessas de ficar aí, de ficar na rua. A família me acolhe, mas eu volto para rua, não tem jeito.

Cidadania em Pauta: E você já trabalhou?
Augusto:
Já, eu trabalhava em lava rápido.

Cidadania em Pauta: Com quantos anos você começou a trabalhar?
Augusto:
Comecei a trabalhar com 15 anos.

Cidadania em Pauta: Aí você ficou dos 15 até quantos anos?
Augusto:
Eu fiquei dos 15 anos até os 17, aí com 17 eu sai, arrumei outro emprego lá no Tatuapé, aí como ele tava falindo eu pedi a conta e fui embora para a rua. Aí renovaram o lava rápido de novo, tão me chamando pra lá, mas eu não tenho condição não, não tenho capacidade mais pra ir pra lá...

Cidadania em Pauta: Por quê?
Augusto:
Porque, sei lá, eu acostumei a trabalhar com negócio de reciclagem também e é por aí né, ficar no meio da bagunça com os caras bebendo, zoando.É assim.

Cidadania em Pauta: Quanto tempo você costuma ficar catando papel?
Augusto:
Bom, se eu começo umas sete e meia, oito horas da manhã, eu vou até meio dia, uma hora da tarde no máximo.

Cidadania em Pauta: Você pode me dizer, em média, quanto você ganha com a reciclagem?
Augusto:
Oh, quando ta bom eu tiro no máximo R$60, R$70, agora, bem se dizer, não to tirando nem R$10 por dia. Caiu muito, é muita concorrência na área. Essa concorrência desvalorizou o preço e aumentaram as pessoas desempregadas, aí nessa dái teve uma recaída.

Cidadania em Pauta: E esse dinheiro o que você faz com ele?
Augusto:
Ah, eu compro alguma coisinha pra mim usar, uma meia, vou dizer discretamente (abaixou a cabeça) uma cueca, uma camisa, mas ultimamente não ta dando nem pra eu fazer isso mais.

Cidadania em Pauta: E depois, o restante do dia?
Augusto:
Ah, depois é só zoeira! Não faço mais nada, só fico na bagunça.

Cidadania em Pauta: O que seria essa bagunça?
Augusto:
Ah, bagunça assim que eu digo é ficar com os colegas tomando cachaça, porque eu não vou mentir, tomando cachaça, zoando, conversando. Às vezes quando eu chapo demais eu deito e durmo, não prejudico ninguém, não atrapalho ninguém. Essa é a bagunça minha


Cidadania em Pauta: E você dorme aonde?
Augusto:
No sofá.

Cidadania em Pauta: Aonde?
Augusto:
No terminal. (se refere ao terminal de São Miguel)

Cidadania em Pauta: É ali a sua casa?
Augusto:
Casa não. É passatempo. Eu passo só algum tempo lá. Agora de sábado e domingo eu tenho minhas roupas limpinhas, vou e tomo um banho ali na dona Amélia, me troco, arrumo um dinheiro e vou para a casa da minha irmã, aí passo o final de semana lá, aí na segunda feira de manhã eu “rua de novo”!

Cidadania em Pauta: E sua irmã te trata bem?
Augusto:
Graças a deus!

Cidadania em Pauta: Ela não ficou com nenhum preconceito?
Augusto:
Não. O único preconceito que ela tem é de gente me judiar na rua, mas o resto nada mais.

Cidadania em Pauta: Por você está na rua você acaba se envolvendo com muitas coisas...
Augusto:
Mas eu sou mais cabeça fresca, eu sou sossegado, eu tenho meus defeitos, mas...

Cidadania em Pauta: Você já se envolveu com drogas?
Augusto:
Já. Não vou mentir. É difícil, é raridade eu usar, mas quando eu começo a pensar em uma coisa que nem na minha esposa que ta hospital, aí eu começo a pensar nela, aí já vem outros negócios na cabeça, aí eu uso.

Cidadania em Pauta: Com quantos anos você começou?
Augusto:
Comecei com 19.

Cidadania em Pauta: Então foi assim que você deixou de trabalhar no lava rápido.
Augusto:
Foi.

Cidadania em Pauta: Você tem uma esposa?
Augusto:
Tenho, visito ela e tudo, só que eu não me conformo dela estar deitada em uma cama.

Cidadania em Pauta: O que aconteceu com ela?
Augusto:
As pernas dela travou, travou tudo.

Cidadania em Pauta: E você vai visitá-la sempre?
Augusto:
Não vou dizer que é sempre, mas quando eu to com momento de silêncio na cabeça eu vou lá e visito ela, fico lá, passo a noite, nós brinca, nós ri...

Cidadania em Pauta: E com o dinheiro da reciclagem você compra coisas só pra você ajuda sua esposa por exemplo?
Augusto:
Às vezes eu dava alguma coisa pra ela, mas as coisas estão ruins, ta péssima, às vezes daqui até Praça do Forró você não acha uma folha de papel.

Cidadania em Pauta: E as suas condições de higiene, para tomar banho, por exemplo, aonde você toma?
Augusto:
Tem a dona Amélia que mora aqui perto, tem o posto de gasolina que os meninos lá me conhecem, aí eu vou tomo banho, troco de roupa sossegado.

Cidadania em Pauta: Você tem muita roupa?
Augusto:
Não, eu não posso levar muita roupa na rua. Tenho muita roupa assim, tenho algumas roupas na casa da minha irmã, se eu trazer tudo pra cá eu vou montar um guarda-roupa lá na rua e aí alguém vai levar tudo.

Cidadania em Pauta: Como é sua alimentação?
Augusto:
Oh, nós faz assim, tipo uma vaquinha. Um compra uma coisa o outro compra outra, ai nós vai aqui buscar no Mercadão ( Mercado Municipal de São Miguel Paulista), vai ali pede um arroz, ninguém vai negar, daí outro traz o macarrão, um pouco de feijão, outro traz um pouco de café, porque eu não fico sem café de manhã, uns os pãezinhos nem que seja pra assar de uma noite pra outra, e a gente vai sobrevivendo quando é a noite. Aí, amanhã tem um marmitex dos meninos da igreja, da Batista, Pentecostal, Deus é Amor. Os meninos também trazem café no dia de sábado, da Pentecostal, tem uns da Congregação e por aí nós vai revezando. E assim nós vamos sobrevivendo aos trancos e barrancos, uma hora Deus vai iluminar todos nós!

Cidadania em Pauta: Tem dia que vocês não tem nada para comer?
Augusto:
É difícil não ter, mas tem dia que a gente passa apertado, é de domingo, mas mesmo assim a gente faz uma carrera vai na feira pega uns peixes a gente conhece uns meninos lá da feira e pega uns filé de peixe, outro arranja o arroz, outro arruma isso, mas fome a gente não passa não, graças a Deus.

Cidadania em Pauta: E no frio como vocês fazem para dormir?
Augusto:
A gente dorme lá em cima na cobertura do Terminal de ônibus, junta uma coberta na outra e dorme todo enrolado. A maioria dos meninos lá tem coberta eu também tenho. Eu tenho duas, outro tem duas, uns tem três, e assim por diante. A gente vai revezando para não passar mais dificuldade do que as que já tem.


Cidadania em Pauta: Você já pensou em de repente trabalhar mais tempo, em vez de trabalhar só um período e depois ficar na bagunça?
Augusto:
Oh, realmente eu pretendia, mas do jeito que tá a infração, aí não tem condições mais.

Cidadania em Pauta: Você acha que não compensa?
Augusto:
Pra mim não ta compensando nada!

Cidadania em Pauta: Você tem alguns colegas que recolhem papel também?
Augusto:
Sim, tenho vários.

Cidadania em Pauta: E como é a vida de vocês, um ajuda o outro?
Augusto:
Vamos dizer assim, oh, a maioria tem um barraquinho aqui, outro lá e assim por diante, mas a maioria mesmo, tá tudo na rua.

Cidadania em Pauta: Você tem amigos?
Augusto:
Oh, não vou mentir não, amigo eu tenho sim, só aquele lá em cima, porque na face da terra não.

Cidadania em Pauta: E você não pensa em arranjar outro trabalho?
Augusto:
Pensar penso, mas ta difícil. Sem documento, sem nada, perdi tudo, não posso tirar outro.

Cidadania em Pauta: Não pode? Por quê?
Augusto:
Porque eu (silencio) aprontei uma arte aí, fiz um negócio errado. Aí eu fiquei preso, já não posso, tem que passar mais uns dois anos e pouco pra mim tirar os documentos de volta.

Cidadania em Pauta: Quanto tempo você ficou preso?
Augusto:
Na primeira vez eu fiquei 3 meses, na segunda eu fiquei 4 à 5 meses, essa última agora eu sai com 2 anos e um mês.

Cidadania em Pauta: E a vida na cadeia como é? É pior do que ficar na rua?
Augusto:
Nossa é difícil. Eu sou mais ficar na rua do que lá dentro, por mais dificuldade que a gente passa por onde a gente correr sempre arranja alguma coisinha pra gente fazer, um entulho, um a laje pra encher, uma fossa pra limpar, uma mudança, lixo pra tirar, por que olha vou te falar, ficar lá dentro não é fácil não, não é qualquer um que agüenta não, já vi colega meu se matar lá dentro por cauda de burrice.

Cidadania em Pauta: E o que você fez para ser preso?
Augusto:
Assalto. Fui no embalo dos outros. Mas, eu me arrependi né.

Cidadania em Pauta: Você acha que na sua vida as pessoas influenciaram muito você pelo lado ruim?
Augusto:
Sim


Cidadania em Pauta: Por curiosidade, você sabe a origem do seu sobrenome? Seus pais eram daqui do Brasil mesmo?
Augusto:
Meu pai não.

Cidadania em Pauta: De onde que seu pai é?
Augusto:
Meu pai é francês. Meu pai era da França, aí ele se amigou com a minha mãe passou dois em casa e depois que eu nasci ele oh , vazou!

Cidadania em Pauta: E sua mãe?
Augusto:
Minha mãe está enterrada aqui no Cemitério da Saudade.

Cidadania em Pauta: Você só tem uma irmã ou tem mais irmãos?
Augusto:
Tem a Ivani, tem a Beth e tem a Conceição. A Conceição mora no Parque Paulistano, Ivani no Jardim Romano e a Beth, que gosta de mim, que é uma maravilha, ta aqui no Jardim Camargo Novo.

Cidadania em Pauta: E as suas outras irmãs não te ajudam?
Augusto:
Eu não conheço nenhuma das minhas outras irmãs. Irmão eu tenho mais não conheço nenhum deles. Só a Beth que me dá apoio.

Cidadania em Pauta: Mas por que você não conhece eles?
Augusto:
Porque eu nunca vi. Eu sou o caçula.

Cidadania em Pauta: E como é q você sabe que eles moram aqui, a Beth q te falou?
Augusto:
A Beth eu vivi com ela antes da minha mãe falecer, porque antes eu trabalhava em Biritiba Mirim, numa chácara. Eu tomava conta de gado, limpava currau, tratava de passarinho.

Cidadania em Pauta: E por que saiu?
Augusto:
Porque o dono vendeu a casa, senão eu tava lá até agora. Tinha gado, cavalo, bicicleta, passarinho, um casal de arara que era a coisa mais linda. Eu não vou mentir, eu tenho saudade de voltar pra lá, porque eu aqui não to valendo mais nada.


Cidadania em Pauta: O que você espera da sua vida hoje?
Augusto:
Tava esperando pelo menos uma coisa, mas é uma coisa que eu nunca mais vou ter de volta. Se a minha mãe estivesse viva eu não estava aqui. Minha mãe me apoiava em tudo, errava e ela sempre tava me apoiando. Graças a Deus, aonde ela ia eu tinha que ir atrás, não deixava minha mãe sozinha nenhum segundo.

Cidadania em Pauta: Você tem objetivos na vida?
Augusto:
Não senhora.

Cidadania em Pauta: Você já se acostumou a vida que leva?
Augusto:
Bom, não é caso de se acostumar, é caso que tem certas coisas que a gente não tolera muito, para mim tolerar alguma coisa, alguma palavra errada já me ofende. Então, sei lá, tem hora que eu prefiro mudar de vida sim, assim um lado aqui ou lá, mas vou falar pra você não é fácil não. Só lamento, to sem cigarro, to sem dinheiro, sem nada , mas eu ando por ai pra ver se consigo alguma coisa. Quem sabe!

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